quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Páginas da vida Gloriana

… D. Pedro concedeu sem dúvida, com a intenção de garantir o povoamento de Santa Maria da Glória, vários privilégios e algumas liberdades aos seus novos habitantes, de proveniências desconhecidas…

…Até uma légua em redor, por autorização lavrada num documento de 1364, era igualmente permitido o cultivo de vinhas, hortas, pomares, etc…

De notar neste âmbito de concessão de privilégios, que de acordo com a tradição oral, exista junto à capela uma pedra, mandada ali colocar por D. Pedro I, cuja inscrição, da competência do rei, determinava que uma légua em volta da capela ninguém podia ser preso ou servir o rei…

Conclui-se deste modo, que os primeiros habitantes da Glória terão sido indivíduos ligados exclusivamente à caça e pastorícia…

Retém-se, também, a ideia, com base exclusivamente em informações obtidas junto da população actual que a apicultura terá sido uma actividade de grade importância na economia deste povo…

…No reinado de D. Fernando, em 1367, foi passada uma carta onde se determina, mais uma vez, a isenção quando ao pagamento de sisa a que foram sujeitos os moradores de Santa Maria da Glória. O povo estava isento de pagar qualquer imposto sobre o seu gado, fosse qual fosse a localidade onde se deslocasse, desde que morasse na aldeia de Glória.

Segundo Margarida Ribeiro, as determinações dos reis D.Pedro I e D. Fernando levam a inferir (…) que esta localidade era considerada, provavelmente, como tratando-se de um lugar, cuja população, vendo-se obrigada a procurar pastagem para o seu gado, daqui se deslocava para outras zonas, dando-lhe uma característica nómada…

… É assim que a 30 de Maio de 1362 – 7 dias após o aparecimento da virgem e no mesmo local em que o milagre se verificou – El rei coloca a primeira pedra para a construção da ermida que seria concluída um ano mais tarde, conforme se pode confirmar através da inscrição, em caracteres góticos, numa lápida rectangular com 64x48cm, embutida no lado direito do frontespício da igreja, que, refere o seguinte:

ERA:DE:MIL:CCC:NA

OS:FERIA:SEGUNDA:X

XX:DIAS:DE:MAIO:FO

I:EDIFICADA:ESTA:EG

REIA:PER:OMUI:NOB

RE:REI:DOM:PEDRO:QU

E:EM:ELA:POSE:A PRI

MEIRA:PEDRA:AQUA

L:MANDOU:FAZER:AG

O MEZ:LQ:ALMOXARIFE

EA:UAASCO:MATRIIZ:

ESCRIVAM:E:FOI:ACABA

DA:EM:HUU:ANO:

… a forma da edificação da igreja e a crença de se tratar de um lugar abençoado pela virgem facilitou a deslocação de pessoas na sua direcção. Por outro lado, e não menos importante o conhecimento de uma fácil captação de água e a facilidade no que indivíduos situados em localidades próximas e entregues à pastorícia, ali se dirigissem em busca de pastos para o seu gado. As primeiras cabanas foram, assim, construídas em madeira retirada dos arvoredos das matas circundantes… fazendo-se a sua expansão, crescendo lateralmente em todos os sentidos à volta da igreja.

_______________________________________________________________

Se o estudo teórico da organização social de vários povos nos permitir concluir ser a procura da identidade uma atitude comum a todas as sociedades, a forma como, para além de uma reveladora falta de definição quanto às origens, a aldeia de Glória organizou, no tempo, o seu espaço em relação às localidades circundantes, é-nos, sem duvida, a expressão prática dessa reflexão teórica.

… a aldeia desenvolveu ao longo do tempo vários mecanismos de manutenção da sua identidade, sendo o espaço territorial o mais forte referencial…

Anabela Figueira, Glória Revisitada, 1984

_______________________________________________________________

Os filhos, na vida social, representam as mães, isto é, as glorianas reconhecem as crianças e mesmo os adultos como “o filho de ti” ou “a filha daquela mulher…”; eles são sempre reconhecidos socialmente pelas mães. O aspecto físico dos filhos, melhor ou pior, é sempre reputado ao comportamento da mãe; à mãe gloriana são atribuídos todos os defeitos ou virtudes dos filhos.

Marília da Conceição Gonçalves, “ Um estudo sobre a centralidade feminina numa aldeia do Ribatejo”, 1995

_______________________________________________________________

A Glória, por ocasião dos diversos trabalhos agrícolas quase se despovoa.

Mulher e homens reúnem-se, ao domingo à noite e segunda-feira…no largo em frente da casa do Senhor Rocha.

Praça – O nome que designa estes ajuntamentos.

Os capatazes e capatazas previamente designados pelos patrões, convidam homens e mulheres para os diversos serviços…

Uma vez contratados, o capataz chega a uma taberna e pede uma molhadura, isto é, meio litro de vinho para cada homem (…) As mulheres recebem uma meada de linha. Aceite molhadura, o homem ou a mulher já não pode abandonar o patrão que o contratou (…) partem em camionetas para a Casa Cadaval ou para os campos de Vila Franca, Salvaterra de Magos, Benfica, Almeirim e Alcácer do Sal (…) se é longe ficam no trabalho durante uma semana ou duas.

As mulheres acamaradam aos grupos de três ou quatro.

Uma leva couves, outras as batatas, outra o toucinho, outra a “burra”. Cada grupo tem uma caldeira (…) e a capataza manda a cozinheira, que está destinada, fazes todas as caldeiras…

Nas horas livres dedicam-se ao trabalho da agulha.

Idalina Serrão, O Falar da Glória do Ribatejo, 1979

_______________________________________________________________

Em algumas passagens deste ansaio aludi, por vezes, ao tipo curioso de velhote, sempre observando a vida da melhor maneira, espécie de Dr. Pangloss perdido aqui pela charneca.

Tudo para ele vai com resignação; e, se há uma desgraça, é caso para erguer as mãos ao céu por ela não ter vindo ainda pior.

A sua conversa é recheada de expressões que revelam um observador sagaz.

O tio Bento falava-me que agora via pouco, e que nos seus olhos quando se afirmava em qualquer coisa, tudo se lhe baralhava e nada distinguia, porque os inundavam cores em mistura.

E sempre optimista, quando eu esperava um primeiro lamento seu, rematou sorrindo:

- É uma festa, senhor. Eu nunca vi cores tão lindas!...

Aludindo ainda à noite, contando-me as suas belezas, dizendo que com ele tudo era igual, exclamou com embevecimento:

- Há lá coisa mais bonita!... a noite não tem portas!

O primeiro sinal de desolação que lhe ouvi, foi quando me falou das dificuldades em que debatem os camponeses.

- vida ruim… ganhos maus… Mais vale uma pessoa estar na cadeira com a porta aberta!...

Certo dia, tio Bento chamou a minha atenção para o facto a que já referia: a igualdade das casas na sua altura, no seu aspecto, não havendo ali preocupações de se dominarem pelo pé-direito das empresas.

As grandes fortunas por lá não avezavam e todos se davam ajuda, quando era necessário prestá-la.

E para me confirmar o que me ia dizendo, teve esta frase bela, pujante de poesia e realidade.

- Ora repare o senhor. Aqui, o fumo das chaminés não alteia.

Alves Redol, Glória Uma Aldeia do Ribatejo, 1938

_______________________________________________________________

Falar da Glória de há 50 ou 60 anos parece ter sido, aos mais diversos autores, tarefa não muito difícil, porquanto a comunidade de então se caracterizava por um todo homogéneo, impulsionado pelas mesmas adversidades e alegrias, mas, sobretudo, condicionadas por um factor a que ninguém podia fugir: o isolamento.

A Glória de hoje passa por uma diversidade tão grande de modo de vida, de formação etc. que dificilmente a poderíamos retratar nestas parcas linhas.

Cumpre-nos, no entanto, registar que continua a ser motivo de grande interesse verificar que esta é uma terra onde ainda podemos ver passar pela nossa porta uma carroça carregada de pasto, um grande número de mulheres que ainda veste como as suas mães, um modo de viver e sentir bastante humildes e recatados. A par de tanta singeleza, esta é a terra em que quase cem por cento dos jovens frequenta o ensino secundário, onde se encontra um elevado número de licenciados, nas mais diversas áreas, onde as habilitações mais recentes contemplam toda a sorte de elementos de bem-estar e qualidade de vida onde os jovens usufruem das ofertas de lazer e cultura próprias das zonas urbanas, etc.

Mas o que se tornou deveras interessante é o equilíbrio entre tais disparidades: uns, arreigados a hábitos ancestrais, outros, completamente voltados para o futuro.

Porém, certo é que esta aparente explosão do progresso não é mais do que o resultado das aprendizagens do passado: quem muito “passou”, esgota-se em esforços para que os filhos não sigam os mesmos passos de sofrimento.

Rita Cachulo Pote, 2001