segunda-feira, 4 de abril de 2011

O Casamento


O casamento, na Glória, foi sempre, desde que há memória, o final de um ciclo e o início de outro. O namoro, por vezes, longo, que antecedia o casamento, era um processo que tinha os seus rituais, absolutamente convencionados e, por consequência, aceites pela sociedade. A transgressão às regras estabelecidas redundava, por norma, em punição para a mulher e nunca para o homem. Assim sendo, a questão do namoro era muito mais vivenciada pelas mulheres, no que se refere ao zelo pelas mesmas regras.
A partir do momento em que um rapaz “se dava” a uma rapariga (o conceito de dar-se significava “ter interesse por”) as famílias de ambos iniciavam uma caminhada de aproximação progressiva, fazendo tudo para agradar uma à outra e, sobretudo, ser merecedora uma da outra.
Em termos de relacionamento, as gentes da Glória não se envolviam com outras, muito menos, no que respeita ao namoro e casamento. Um dos primeiros casamentos acontecidos na Glória, em que um dos noivos era de fora, ocorreu na década de 50. Foi considerado excepção e, por isso, a moda não pegou. Este carácter restritivo das relações sociais vivia-se inclusivamente dentro da própria comunidade: os sarapatelos não se intrometiam na vida dos serrotes e vice-versa. Aqueles viviam dependentes das terras e do gado e pouco saíam. Estes ganhavam o pão, trabalhando para outrem. Em termos geográficos, um simples ribeiro separava uns dos outros. Até nos bailes havia separação. A data do casamento não era marcada em função das condições que o casal tivesse reunido para esse fim, mas porque tinha “chegado a altura”. Com o casamento, o casal iniciava, assim, uma luta por conseguir o máximo, de modo a construir a sua “casinha”. Então, quanto mais cedo se fizesse o casamento, mais facilmente alcançaria a sua meta. Como tal, os recém-casados ficavam a viver, geralmente, em casa dos pais dela. O casamento era uma ocasião muito ansiada, não só pelos noivos, por razões óbvias, mas também pela família, convidados, vizinhos, crianças, etc.. Era uma oportunidade de rara fartura de tudo (se é que se pode falar de abundância): comida, divertimento, descanso, roupas vistosas… Para se ser rigoroso, é forçoso que se assinalem diferenças significativas, consoante as épocas. Também não é de admirar que o período temporal a que nos referimos vá até ao final da época de 60, princípio da de 70 (sec. XX), pois, na Glória, só após o 25 de Abril, se começaram a desvanecer algumas das tradições mais enraizadas. Do princípio do século XX até aos anos 40, poucos relatos conseguimos. Soubemos, no entanto, que a pobreza era grande e, por isso, as vontades maiores do que as festas. A grande festa centrava-se no fato da noiva, confeccionado, muitas vezes, por ela própria, pela mãe ou por uma mulher chegada à família que evidenciasse dotes reconhecidos. Comprava-se o tecido de risca-de-seda, fitas, rendas, o lenço de cachené e o xaile turco, na feira de Coruche. Da indumentária da noiva, há ainda a referir os sapatos grossos (que pouco tempo se mantinham nos pés, por falta de hábito), os brincos à cabaça, o cordão e as pregadeiras de oiro. O fato era composto por duas peças – saia rodada até aos pés e casaco da mesma cor – talvez para se parecer com um vestido. As cores mais frequentes eram a“cor-de-canela” e o azul. O lenço da cabeça era disposto de forma solta, a imitar um véu. O noivo, também mais vistoso do que o habitual, vestia fato, composto por calça, colete e jaqueta da mesma cor (preto ou castanho), cinta de cetim e uma camisa mimosa de risca-de-seda (branca, cor-de-limão, azul clarinho…), de peitilho. Ao peito evidenciava relógio de bolso e respectivas correntes de ouro. Em vez do barrete, um chapéu preto, sapatos grosseiros e um cajado, de que nunca abdicava, em ocasião alguma. A cerimónia realizava-se em Muge, freguesia a que a Glória pertenceu e que se situa a 10 quilómetros. A noiva fazia o percurso a pé ou de burro e o noivo, atrás, de cajado na mão. Enquanto isso, em casa, decorriam os preparativos para a boda: em volta de grandes alguidares de barro, as mulheres migavam a couve que haviam de juntar ao grão e às carnes caseiras – de cabra, carneiro, porco, galinha, que já estavam a cozer em lume de lenha. De véspera, tinha-se feito meia dúzia de bolos duros. A festa decorria ao longo de dois dias: um, em casa dos pais dela, outro em casa dos pais dele. Sabe-se que o divertimento era grande. Armava-se um bailarico, animado por vozes femininas, por conjuntos de gaitas, um harmónio, uma concertina, conforme os casos.
A década de 50 introduz grandes novidades. Um facto aparentemente tão simples como a prática do serviço religioso com alguma regularidade, na capela da Glória, arrasta consigo uma série de alterações. As deslocações a Muge já não são necessárias (só o faz quem quer), poupando-se tempo e esforços, que revertem a favor da festa de casamento. Pegam em moda, nesta altura, outros rituais que passam a constituir motivo de grande espectacularidade para toda a comunidade. A festa começa cedo com o “mata-bicho”. Há bolos secos (pão-de-ló, bolo branco, bolo de erva-doce) e arroz-doce duro, pão, conduto, vinho e bebidas finas, que tinham sido oferecidas pelos convidados – homens. A esta hora os convidados estão quase todos reunidos, em casa do noivo, pois segue-se um cerimonial que consiste em ir buscar a noiva a casa da madrinha. Segue, então, de casa do noivo, um cortejo, em que cada um ocupa uma posição pré-estabelecida: à frente, em lugar de destaque e em pose autoritária, vai o pai de cada um dos nubentes. Logo atrás, os padrinhos que ladeiam o noivo. De seguida, o tocador e os convidados. A concertina entoava uma marcha que animava de diferentes maneiras quem a ouvia: uns emocionavam-se, outros começavam aí a sentir a euforia do divertimento, mas uma das suas funções mais importantes era o anunciar que havia casamento. Ao ouvir a concertina, toda a gente corria para ver passar o cortejo – homens, mulheres e crianças. Estas iam sempre atrás. Chegando-se a casa da madrinha da noiva, onde esta aguardava, na companhia dos seus padrinhos, mãe e alguns convidados da sua parte, encaminhavam-se para a igreja. Os pais continuavam à frente, seguidos pela noiva, ao meio dos seus padrinhos e, atrás de si, o noivo, na mesma posição. As mães não tinham lugar determinado. A maior parte das vezes, ficavam em casa a tomar providências. O casamento fazia-se de manhã e, de regresso, os noivos já vinham ao lado um do outro, acompanhados pelos respectivos padrinhos. Os pais, sempre à frente. À saída da igreja,(ao som do toque eufórico do sino), três ou quatro convidadas atiravam amêndoas para quem, de fora, estava a ver o casamento. Mulheres, cachopas e rapazes, ao desafio, apanhavam-nas do chão, a ver quem fazia o regaço maior.
Na semana anterior ao casamento, cada convidada casada oferecia à mãe um farnel, composto por massa, arroz, açúcar, farinha, grão, ovos, etc. e uma galinha. Os homens levavam um garrafão de vinho e uma garrafa de bebida fina. Durante toda a semana, bastante atarefadas, as mulheres faziam os preparativos para a boda: os bolos, o arroz-doce, matavam os animais e preparavam as carnes. A boda durava dois dias. A ementa era sempre a mesma: couve com grão, massa com galinha…mas surge, nesta altura, um prato novo, a juntar aos anteriores – carneiro guisado com batatas. Os doces sofrem um pequeno aumento. Ao Domingo, ou seja, no segundo dia de casamento, depois do almoço, fazia-se a “entrega da noiva”. De novo, em grande cortejo, a concertina a tocar, os noivos à frente, ia ver-se o sítio onde os noivos iam passar a viver. Aí, os convidados faziam fila e ordenadamente davam os parabéns aos noivos, pais e padrinhos, que se dispunham também em posições definidas. A noiva partia o bolo e oferecia aos convidados que retribuíam com uma oferta em dinheiro. As mulheres, neste momento, já não ofereciam nada, visto que o farto farnel, oferecido na semana anterior ao casamento, constituía a sua comparticipação. A “entrega da noiva” durava até à tardinha, depois de se ter realizado um animado bailarico. Umas horas antes da “entrega da noiva”, duas convidadas (por norma, raparigas), uma de cada parte, levavam à cabeça, pela rua, desde o local da boda até ao da “entrega”, o bolo da noiva e o bolo do noivo, em cestos de verga, descobertos, para que toda a gente os pudesse admirar. Os bolos, enfeitados e grandes, eram uma espécie de símbolos, colocados sobre a mesa, no lugar ocupado pelos noivos. Antes da ceia, quer no primeiro, quer no segundo dia, os homens tinham de libertar o espaço, para que as mulheres pudessem “fazer o serviço”. Assim, andavam de taberna em taberna, com o tocador e, aí, alguém pagava vinho e cigarros, de que todos se serviam. A noiva já evidenciava, nesta altura, alguns prenúncios de modernismo, no seu trajar. A saia, ainda pregueada, já só tapa os joelhos e o lenço da cabeça, em vez de amarelo garrido, verde ou cor-de-laranja, como anteriormente, passa a ser branco ou cor-de-limão, mas ainda de cachené. Nos pés, uns sapatinhos de “polimenta” (verniz). O cordão, as pregadeiras, os brincos “rabo-de-colher” rematam a compostura. Do fato do noivo, em termos tradicionais, já só se evidencia a camisa. Este deixa também de usar chapéu. A casa da boda era enfeitada com balões de papel, como os usados nas festas religiosas anuais. A década de 60 implanta, definitivamente, modas novas, em termos de vestuário, principalmente. No final da década, o fato da noiva, ainda de cor, de preferência, azul ou cor-de-grão, e de tecido fino (seda, tafetá, crepe ou sarjado) era composto por saia rodada, curta, e blusa da mesma cor. A saia já não era pregueada, a blusa justinha substituía o casaco e, na cabeça, uma mantilha branca. O noivo adopta as modas dos anos 60. Na transição dos anos 60 para os anos 70, o branco passa a ser a cor preferida para o fato da noiva, mas, ainda assim, é composto por duas peças (saia rodada, curta, e blusa). A noiva passa a ir à cabeleireira, não para cortar o cabelo, mas para elaborar um enorme carrapito, donde pendia o véu, até à altura da saia. Meias de vidro e sapatos ao gosto da época completavam o aspecto. Este foi o último fato de carácter etnográfico. Mas, se por um lado, em termos de aparência física, as tradições vão sendo substituídas pelas novidades, por outro, a festa do casamento ganha cada vez mais peso, à medida que o tempo avança e, nos finais dos anos 60, os casamentos passam a durar três e quatro dias, num entusiasmo ininterrupto. A “entrega da noiva” faz-se, agora, na maior parte dos casos, em casa da madrinha. Todos os convencionalismos que se desenham nos anos 50 ganham, nesta altura, uma solidez que parecia inabalável, de tal modo que o casamento de “fulana” ou “beltrana” era lembrado, durante muito tempo, nos trabalhos ou nas conversas domésticas. Comia-se, bebia-se, brincava-se e balhava-se, sem conta nem medida. Os dias eram “tirados” para isso e havia em quase todos os casamentos uma espécie de convidados certos que garantiam a animosidade do festim. O que acaba de descrever-se é apenas uma síntese que toca alguns dos aspectos peculiares do casamento tradicional, na Glória, ao longo dos tempos. Em jeito de conclusão, devemos também mencionar que não são raras, da parte de algumas informadoras, as exclamações: “o meu casamento não foi nada” ou “eu não tive casamento”. Estas devem-se ao facto de não se ter realizado a boda. Tal circunstância podia resultar de vários factores, como, por exemplo, a falta de posses ou uma situação de desgosto (luto ou outra) que tivesse marcado a família. Nos anos 80, surge a moda do restaurante e esfumam-se, assim, no tempo, hábitos, costumes e rituais, com toda uma carga simbólica, representativa de uma sociedade que durante muito tempo preferiu definir e respeitar as suas próprias regras, em função das circunstâncias, e de um modo de sentir muito sui generis.

Recolha de Rita Cachulo Pote (1999) Informadores: Mulheres de idades diversas Informadores Principais: (Ti Bárbara do João Modesto, Ti Gertrudes Luciana, João Guedes)