Desde sempre, em todas as comunidades, houve pessoas que se impuseram, por uma razão ou outra, mesmo involuntariamente, tornando-se figuras carismáticas, em torno das quais, as sociedades organizavam costumes, atitudes, modos de estar.
Na Glória, houve também algumas destas personagens: o ti Bruxa, cuja vivência foi tão marcante, que chegou até aos nossos dias.
António Alexandre Monteiro nasceu em 1896 e faleceu em 13 de Abril de 1974, curiosamente, duas semanas antes do 25 de Abril. Dos seus longos 78 anos, conta-se, segundo a sua filha mais velha (hoje com 89 anos) uma infância humilde, como a de qualquer criança da sua condição, a que deve acrescentar-se uma particularidade – o medo das bruxas. Daí resultaria a sua alcunha que se estenderia a toda a família, até aos nossos dias.
Homem de estatura bem constituída, o ti Bruxa viria a revelar dotes invulgares para a música, tornando-se, sem favor, um exímio tocador de harmónio. A sua “habilidade”, aliada à raridade de instrumentos que caracterizava a época, depressa fizeram dele uma figura querida entre toda a gente, principalmente, dos mais jovens, que não tinham outra fonte artística senão as vozes femininas e as gaitas de beiços, uma ou outra guitarra. O harmónio era um luxo para o tempo.
Era de tal forma contagiante a sua expressividade que, em sua própria casa, tocava para a família, filhos e filhas, dançando com a mulher, ao mesmo tempo que tocava (segundo testemunhos dos filhos).
Esse protagonismo faria com que os capatazes facilmente arranjassem umas boas dezenas de trabalhadores, no caso do ti Bruxa estar incluído no grupo (ainda que o preço da jorna fosse mais baixo).
A sua actividade, enquanto tocador, foi intensa e longa, não tendo conta o número de bailes que realizou, quer na rua, debaixo do chaparrão ou nos trabalhos.
Tocou, ainda, no Rancho da Glória (foi o primeiro tocador do Rancho), tendo-se deslocado em 1956 à Feira do Ribatejo, a Santarém, onde (segundo testemunho de um filho) Celestino Graça teria feito uma gravação, cujo destino desconhecemos. Sabe-se que continuou no Rancho, por mais algum tempo, ficando, nas instalações da Casa do Povo, o velho harmónio do ti Bruxa.
Estamos convencidos de que a maior parte do repertório que este grupo hoje apresenta foi transmitido, directamente, sem interrupções temporais, através deste homem, que nos deixou, por isso, um legado importantíssimo, bem como alguns discípulos, como, por exemplo, Narciso Sousa, tocador de gaita de beiços. O seu talento pode atestar-se, ainda hoje, através de uma gravação rústica, efectuada pelo próprio, já no fim da vida.
Recolha de Alexandra Dias e Rita Cachulo Pote (Maio / 2007)
A Glória foi, até há pouco tempo, uma comunidade quase exclusivamente rural, pelo que a praça teve uma importância bastante significativa na vida desta comunidade.
Tratava-se de uma circunstância de grande dinâmica, pois aí se decidia a vida das três ou quatro semanas seguintes. Ir trabalhar para este ou para aquele, ganhar mais cinco escudos ou menos cinco escudos, eram condições bem pensadas e bem negociadas. Era, por isso, um momento em que toda a gente (os que iam trabalhar e os que não iam) se juntava na rua: as mulheres, em grandes magotes, no “Largo da Praça”, os homens, dentro das tabernas ou à porta, também em grandes grupos. A capataza “falava” às mulheres, o capataz, aos homens.
Ao Domingo à noite, começava a reunião que se prolongava pela tarde de segunda-feira, agrupando-se os seus elementos, por hierarquias. As cachopas juntavam-se por mocidades, as mulheres casadas formavam outros grupos, o mesmo acontecendo relativamente aos homens. Para os cachopos, este era um momento privilegiado para a brincadeira, “furando” por entre os magotes, puxando os lenços e as saias às mulheres. O ambiente proporcionava-se ao uso, por parte das solteiras, de “roupas bonitas”: casaquinhos bem empregueados, aventais novos. As mulheres casadas punham toda a sua luxúria nas roupas dos meninos que traziam ao colo: vestidinhos marcados, toucas engalanadas.
A escolha deste ou daquele patrão tinha origem em vários factores, mas o que mais contava era o preço da jorna. Contudo, havia outras condições que entravam em linha de conta, como as camaradas, a duração (por semanas), o divertimento, o quartel, etc.. O contrato, (sempre verbal) selava-se com a molhadura.
Para os homens, meio litro de vinho, as mulheres davam-se a pequenos capricho
s. Para elas, a simbólica molhadura era representada por uma meada de linha para marcar (cor-de-salsa, cor-de-laranja, cor-de-rosa, cor-de-lírio), de entre muitas que se encontravam numa caixinha de cartão e que a capataza dava a escolher. Em jeito de exibicionismo, as raparigas pregavam no avental ou no casaco duas ou três molhaduras, divulgando dessa forma as suas qualidades, já que cada molhadura representava um contacto ou um contrato.
Assim, até à escolha final do patrão, a praça durava at
é à tardinha de segunda-feira, podendo ver-se, pelas ruas, as mães com os farnéis já aviados, à cabeça, enquanto as raparigas aproveitavam os últimos momentos, antes duma ausência que podia ser de três ou quatro semanas.
Texto de Rita Cachulo Pote (Março/2007) Recolha Colectiva (Rancho Folclórico da Casa do Povo de Glória do Ribatejo)
… D. Pedro concedeu sem dúvida, com a intenção de garantir o povoamento de Santa Maria da Glória, vários privilégios e algumas liberdades aos seus novos habitantes, de proveniências desconhecidas…
…Até uma légua em redor, por autorização lavrada num documento de 1364, era igualmente permitido o cultivo de vinhas, hortas, pomares, etc…
De notar neste âmbito de concessão de privilégios, que de acordo com a tradição oral, exista junto à capela uma pedra, mandada ali colocar por D. Pedro I, cuja inscrição, da competência do rei, determinava que uma légua em volta da capela ninguém podia ser preso ou servir o rei…
Conclui-se deste modo, que os primeiros habitantes da Glória terão sido indivíduos ligados exclusivamente à caça e pastorícia…
Retém-se, também, a ideia, com base exclusivamente em informações obtidas junto da população actual que a apicultura terá sido uma actividade de grade importância na economia deste povo…
…No reinado de D. Fernando, em 1367, foi passada uma carta onde se determina, mais uma vez, a isenção quando ao pagamento de sisa a que foram sujeitos os moradores de Santa Maria da Glória. O povo estava isento de pagar qualquer imposto sobre o seu gado, fosse qual fosse a localidade onde se deslocasse, desde que morasse na aldeia de Glória.
Segundo Margarida Ribeiro, as determinações dos reis D.Pedro I e D. Fernando levam a inferir (…) que esta localidade era considerada, provavelmente, como tratando-se de um lugar, cuja população, vendo-se obrigada a procurar pastagem para o seu gado, daqui se deslocava para outras zonas, dando-lhe uma característica nómada…
… É assim que a 30 de Maio de 1362 – 7 dias após o aparecimento da virgem e no mesmo local em que o milagre se verificou – El rei coloca a primeira pedra para a construção da ermida que seria concluída um ano mais tarde, conforme se pode confirmar através da inscrição, em caracteres góticos, numa lápida rectangular com 64x48cm, embutida no lado direito do frontespício da igreja, que, refere o seguinte:
ERA:DE:MIL:CCC:NA
OS:FERIA:SEGUNDA:X
XX:DIAS:DE:MAIO:FO
I:EDIFICADA:ESTA:EG
REIA:PER:OMUI:NOB
RE:REI:DOM:PEDRO:QU
E:EM:ELA:POSE:A PRI
MEIRA:PEDRA:AQUA
L:MANDOU:FAZER:AG
O MEZ:LQ:ALMOXARIFE
EA:UAASCO:MATRIIZ:
ESCRIVAM:E:FOI:ACABA
DA:EM:HUU:ANO:
… a forma da edificação da igreja e a crença de se tratar de um lugar abençoado pela virgem facilitou a deslocação de pessoas na sua direcção. Por outro lado, e não menos importante o conhecimento de uma fácil captação de água e a facilidade no que indivíduos situados em localidades próximas e entregues à pastorícia, ali se dirigissem em busca de pastos para o seu gado. As primeiras cabanas foram, assim, construídas em madeira retirada dos arvoredos das matas circundantes… fazendo-se a sua expansão, crescendo lateralmente em todos os sentidos à volta da igreja.
Se o estudo teórico da organização social de vários povos nos permitir concluir ser a procura da identidade uma atitude comum a todas as sociedades, a forma como, para além de uma reveladora falta de definição quanto às origens, a aldeia de Glória organizou, no tempo, o seu espaço em relação às localidades circundantes, é-nos, sem duvida, a expressão prática dessa reflexão teórica.
… a aldeia desenvolveu ao longo do tempo vários mecanismos de manutenção da sua identidade, sendo o espaço territorial o mais forte referencial…
Os filhos, na vida social, representam as mães, isto é, as glorianas reconhecem as crianças e mesmo os adultos como “o filho de ti” ou “a filha daquela mulher…”; eles são sempre reconhecidos socialmente pelas mães. O aspecto físico dos filhos, melhor ou pior, é sempre reputado ao comportamento da mãe; à mãe gloriana são atribuídos todos os defeitos ou virtudes dos filhos.
Marília da Conceição Gonçalves, “ Um estudo sobre a centralidade feminina numa aldeia do Ribatejo”, 1995
A Glória, por ocasião dos diversos trabalhos agrícolas quase se despovoa.
Mulher e homens reúnem-se, ao domingo à noite e segunda-feira…no largo em frente da casa do Senhor Rocha.
Praça – O nome que designa estes ajuntamentos.
Os capatazes e capatazas previamente designados pelos patrões, convidam homens e mulheres para os diversos serviços…
Uma vez contratados, o capataz chega a uma taberna e pede uma molhadura, isto é, meio litro de vinho para cada homem (…) As mulheres recebem uma meada de linha. Aceite molhadura, o homem ou a mulher já não pode abandonar o patrão que o contratou (…) partem em camionetas para a Casa Cadaval ou para os campos de Vila Franca, Salvaterra de Magos, Benfica, Almeirim e Alcácer do Sal (…) se é longe ficam no trabalho durante uma semana ou duas.
As mulheres acamaradam aos grupos de três ou quatro.
Uma leva couves, outras as batatas, outra o toucinho, outra a “burra”. Cada grupo tem uma caldeira (…) e a capataza manda a cozinheira, que está destinada, fazes todas as caldeiras…
Nas horas livres dedicam-se ao trabalho da agulha.
Idalina Serrão, O Falar da Glória do Ribatejo, 1979
Em algumas passagens deste ansaio aludi, por vezes, ao tipo curioso de velhote, sempre observando a vida da melhor maneira, espécie de Dr. Pangloss perdido aqui pela charneca.
Tudo para ele vai com resignação; e, se há uma desgraça, é caso para erguer as mãos ao céu por ela não ter vindo ainda pior.
A sua conversa é recheada de expressões que revelam um observador sagaz.
O tio Bento falava-me que agora via pouco, e que nos seus olhos quando se afirmava em qualquer coisa, tudo se lhe baralhava e nada distinguia, porque os inundavam cores em mistura.
E sempre optimista, quando eu esperava um primeiro lamento seu, rematou sorrindo:
- É uma festa, senhor. Eu nunca vi cores tão lindas!...
Aludindo ainda à noite, contando-me as suas belezas, dizendo que com ele tudo era igual, exclamou com embevecimento:
- Há lá coisa mais bonita!... a noite não tem portas!
O primeiro sinal de desolação que lhe ouvi, foi quando me falou das dificuldades em que debatem os camponeses.
- vida ruim… ganhos maus… Mais vale uma pessoa estar na cadeira com a porta aberta!...
Certo dia, tio Bento chamou a minha atenção para o facto a que já referia: a igualdade das casas na sua altura, no seu aspecto, não havendo ali preocupações de se dominarem pelo pé-direito das empresas.
As grandes fortunas por lá não avezavam e todos se davam ajuda, quando era necessário prestá-la.
E para me confirmar o que me ia dizendo, teve esta frase bela, pujante de poesia e realidade.
- Ora repare o senhor. Aqui, o fumo das chaminés não alteia.
Falar da Glória de há 50 ou 60 anos parece ter sido, aos mais diversos autores, tarefa não muito difícil, porquanto a comunidade de então se caracterizava por um todo homogéneo, impulsionado pelas mesmas adversidades e alegrias, mas, sobretudo, condicionadas por um factor a que ninguém podia fugir: o isolamento.
A Glória de hoje passa por uma diversidade tão grande de modo de vida, de formação etc. que dificilmente a poderíamos retratar nestas parcas linhas.
Cumpre-nos, no entanto, registar que continua a ser motivo de grande interesse verificar que esta é uma terra onde ainda podemos ver passar pela nossa porta uma carroça carregada de pasto, um grande número de mulheres que ainda veste como as suas mães, um modo de viver e sentir bastante humildes e recatados. A par de tanta singeleza, esta é a terra em que quase cem por cento dos jovens frequenta o ensino secundário, onde se encontra um elevado número de licenciados, nas mais diversas áreas, onde as habilitações mais recentes contemplam toda a sorte de elementos de bem-estar e qualidade de vida onde os jovens usufruem das ofertas de lazer e cultura próprias das zonas urbanas, etc.
Mas o que se tornou deveras interessante é o equilíbrio entre tais disparidades: uns, arreigados a hábitos ancestrais, outros, completamente voltados para o futuro.
Porém, certo é que esta aparente explosão do progresso não é mais do que o resultado das aprendizagens do passado: quem muito “passou”, esgota-se em esforços para que os filhos não sigam os mesmos passos de sofrimento.
Como já referido no texto publicado no mês de Junho, quando fez 54 anos de existência, o Rancho Folclórico da Casa do Povo de Glória do Ribatejo, comemora hoje 48 anos de integração na Casa do Povo.
Durante todos estes anos os elementos do grupo, e gentes que por ele passaram, contribuíram para todo o trabalho hoje existente, quer ao nível de divulgação, recolha e pesquisa, quer a nível de mão-de-obra na reabilitação do edifício da Casa do Povo.
Como já elucidado, o Rancho Folclórico da Casa do Povo de Glória do Ribatejo esteve o mês passado em Bolzano, Itália, a participar num maravilhoso encontro de grupos europeus (EUROPEADE 2010).
Bolzano é, sem dúvida, um sítio deslumbrante, de água pura e paisagens fascinantes. Apesar de algum cansaço da viagem, os elementos do grupo estão de parabéns, pois o objectivo foi alcançado, transmitindo, com dignidade, a milhares de pessoas de variadíssimos lugares do mundo, uma parte da nossa Glória. Começámos por dar a conhecer pelas ruas da cidade, os nossos trajes, costumes, danças, cantigas e melodias da terra. Fomos bastante fotografados e fizemos uma pequena apresentação para um canal televisivo, que se encantou com os nossos trajes, enquanto íamos a caminhar descontraidamente. Mas o momento mais esperado, tanto pelos elementos dos grupos, como pelo público, é o dia do desfile etnográfico, onde participaram 203 grupos e, depois, a final, onde os participantes fazem uma pequena apresentação. Para quem está a ver é um espectáculo fabuloso, mas para nós que participamos, como já dito noutros textos, o facto de se sentir que se está a representar Portugal e a contribuir para a divulgação das nossas tradições é algo muito gratificante e emocionante. Aqui ficam algumas fotos, vídeos e páginas onde podem ver a nossa participação.
Nas últimas duas semanas de Julho de 2009, o Rancho Folclórico da Casa do Povo de Glória do Ribatejo, esteve presente na Europeada 2009, em Klaipeda, Lituânia. Foi sem dúvida uma viagem que exigiu um enorme esforço por parte de todos os elementos presentes, mas muito gratificante quando se sente que se está a representar o nosso país e principalmente a nossa terra. É essa a nossa grande recompensa, o facto de sentirmos que estamos a contribuir para a divulgação da cultura gloriana. Com o objectivo da promoção e convívio entre culturas europeias, estes encontros realizam-se todos os anos em países diferentes e juntam variadíssimos grupos de folclore (e não só) de todos os cantos do velho continente. Pois bem, este ano estaremos em Bolzano, Itália, do dia 21 a 25 de Julho. Será certamente uma viagem de muito convívio, alegrias e muitas descobertas. Para além disso daremos o nosso melhor e esperamos deixar bem patente um recanto, muito rico em tradições, do nosso Portugal, que é a Glória.
“Em séculos que o tempo devorou, tudo era coutada à sua volta, num mato arrogante onde os homens mergulhavam e se perdiam.
A caça ali tinha os seus domínios e os escassos humanos que por lá viviam eram mais caçadores que camponeses.
A reis e príncipes não passou o local para suas excursões cinegéticas.
E de Santarém a Salvaterra, ali vinham com grande tropel de cavalos abater porcos-monteses…
D. Pedro, apaixonado por aqueles exercícios e encontrado hábeis concorrentes nos caçadores locais, proibiu-lhes a matança da sua caça predilecta, mas em troca concedia à Glória uma carta a mercês, fomentado a agricultura e a pecuária com facilidades de terrenos e pastos…
Então vieram guardas-coiteiros que aumentaram o número de povoadores…
Com a repressão, os glorienses voltavam-se para a charneca, trocando as armas pelo arado, e revolveram-lhe as entranhas, lançando sementes na promissão de colheitas compensadoras…
A propriedade era limitada pelo trabalho – quem mais desbravasse, mais possuía…
A terra era de todos.
E a nova gente chegava atraída pelas facilidades de fixação.
Outra mercê de que ignoro o doador, nem por informações consegui determinar, isentava da militança os homens da Glória. Fugidos à lei da guerra, ali se acolhiam para trabalhar…
Contam os velhos, nas suas recordações de mocidade, que na igreja havia uma pedra onde tal ordem se gravava e que dali levaram não sabem para onde.
Assim, a Glória, nos seus prováveis sete séculos de existência, teria recebido primeiro ribatejanos e alentejões, para a vida da caça, e, depois da mercê de D. Pedro I, gente da Beira arrastada pelas concessões de el-rei para a cultura da charneca…
A Glória, situada numa região plana, e como tal mais aberta a infiltrações de povos, não tem um tipo definido de habitantes. Nela predomina, entretanto, o homem de rosto moreno, cabelo negro e estatura média, semelhantes à raça líbia-fenícia. O tipo louro é também vulgar..
…essa raça fixou-se principalmente nas costas do nosso país e é nas classes piscatórias onde se encontram com maior frequência as características que a distinguem…
Vejamos como podiam ter vindo para a Glória e quais os pontos de semelhança com essas populações do litoral. Assim, o topo de casaco, a saia de muita rosa, a cinta, os pés descalços e o uso da saia pela cabeça e costas, constituem excepções aos hábitos da camponesa do Ribatejo. São antes cosntumes vulgares nas mulheres da Beira Litoral. O maior número destes impunha, como é natural, trajes e costumes, mas assimilava, entretanto dos primeiros povoadores, alguns outros mais fagueiros ao seu espírito. Desta interdependência saíram as regras e os hábitos a comunidade.
Enquanto o cingeleiro permanece na Glória conduzindo o seu gado e cultivando a sua terra, fechado a influências estranhas, o trabalhador rural vai para as lezírias, para as regiões da grande cultura, e ali entra em contacto com outros trabalhadores de que recebe infiltrações.
Na sua índole o gloriense é reservado e frio ao primeiro contacto, mas franco e acolhedor, hospitaleiro e bom, se mais na alma lhe penetramos…
São pacíficos, pouco brigões, o que amplamente se exemplifica com a nula percentagem de criminologia entre eles…
As poucas refregas que se davam, decididas a varapau, em cuja esgrima são mestres, desapareceram…
Todos se auxiliam, não sendo raras as provas de solidariedade prestadas a viúvas e órfãos de companheiros de trabalho…
As mulheres, nos campos para onde vão trabalhar, exigem quartéis separados, escolhem locais de faina também distantes dos outros ranchos e dançam à parte. Mas a justificação dessa desconfiança encontra-se nos seus costumes. É que, sendo tabu entre glorienses casar com gente de outras terras – e raras são excepções – evitam por todos os meios que o fogo se ateie, erguendo essas barreiras que os isolam…
Uma alta expressão do cuidado das glorianas, assim se apodam, está nas toucas e vestidos dos seus filhinhos. Qualquer touca vulgar é engrinaldada de dois e três franzidos, e o restante coberto de bordados vários. Nelas se esmeram, pondo-lhe na confecção toda a sua arte apurada…
A dança na Glória é muito cultivada. O vira, o fandango, o verde gaio, o bailarico, a remexida e a valsa serena têm a sua predilecção. Os glorienses dançam ao som do harmónio, da concertina, da guitarra, da gaita de curra-beiços ou da flauta…
Preferem as danças de enlaçamento, e de entre elas a remexida vertiginosa e impulsiva…
Os que ficam sem rapariga estão à volta, e, quando lhes apetece, afastam outro, tomando-lhe o par…
As cachopas não gostam que os seus pares se apurem na dança com requebros exagerados e passos que chamen a curiosidade da assistência.
Abandonam-nos no terreiro, fogem-lhe e exclamam:
- Cheta, cão!...
E eles galhofam e tetam arrastá-las para a vertigem das remexidas ou a suavidade das valsas serenas…
E é assim este povo admirável, que quer ser feliz e o merece.
Os seus pesares e lutas, folguedos e amores, o fazem poeta. Primeiro que outros o cantassem, ele se cantou…”