“Em séculos que o tempo devorou, tudo era coutada à sua volta, num mato arrogante onde os homens mergulhavam e se perdiam.
A caça ali tinha os seus domínios e os escassos humanos que por lá viviam eram mais caçadores que camponeses.
A reis e príncipes não passou o local para suas excursões cinegéticas.
E de Santarém a Salvaterra, ali vinham com grande tropel de cavalos abater porcos-monteses…
D. Pedro, apaixonado por aqueles exercícios e encontrado hábeis concorrentes nos caçadores locais, proibiu-lhes a matança da sua caça predilecta, mas em troca concedia à Glória uma carta a mercês, fomentado a agricultura e a pecuária com facilidades de terrenos e pastos…
Então vieram guardas-coiteiros que aumentaram o número de povoadores…
Com a repressão, os glorienses voltavam-se para a charneca, trocando as armas pelo arado, e revolveram-lhe as entranhas, lançando sementes na promissão de colheitas compensadoras…
A propriedade era limitada pelo trabalho – quem mais desbravasse, mais possuía…
A terra era de todos.
E a nova gente chegava atraída pelas facilidades de fixação.
Outra mercê de que ignoro o doador, nem por informações consegui determinar, isentava da militança os homens da Glória. Fugidos à lei da guerra, ali se acolhiam para trabalhar…
Contam os velhos, nas suas recordações de mocidade, que na igreja havia uma pedra onde tal ordem se gravava e que dali levaram não sabem para onde.
Assim, a Glória, nos seus prováveis sete séculos de existência, teria recebido primeiro ribatejanos e alentejões, para a vida da caça, e, depois da mercê de D. Pedro I, gente da Beira arrastada pelas concessões de el-rei para a cultura da charneca…
A Glória, situada numa região plana, e como tal mais aberta a infiltrações de povos, não tem um tipo definido de habitantes. Nela predomina, entretanto, o homem de rosto moreno, cabelo negro e estatura média, semelhantes à raça líbia-fenícia. O tipo louro é também vulgar..
…essa raça fixou-se principalmente nas costas do nosso país e é nas classes piscatórias onde se encontram com maior frequência as características que a distinguem…
Vejamos como podiam ter vindo para a Glória e quais os pontos de semelhança com essas populações do litoral. Assim, o topo de casaco, a saia de muita rosa, a cinta, os pés descalços e o uso da saia pela cabeça e costas, constituem excepções aos hábitos da camponesa do Ribatejo. São antes cosntumes vulgares nas mulheres da Beira Litoral. O maior número destes impunha, como é natural, trajes e costumes, mas assimilava, entretanto dos primeiros povoadores, alguns outros mais fagueiros ao seu espírito. Desta interdependência saíram as regras e os hábitos a comunidade.
Enquanto o cingeleiro permanece na Glória conduzindo o seu gado e cultivando a sua terra, fechado a influências estranhas, o trabalhador rural vai para as lezírias, para as regiões da grande cultura, e ali entra em contacto com outros trabalhadores de que recebe infiltrações.
Na sua índole o gloriense é reservado e frio ao primeiro contacto, mas franco e acolhedor, hospitaleiro e bom, se mais na alma lhe penetramos…
São pacíficos, pouco brigões, o que amplamente se exemplifica com a nula percentagem de criminologia entre eles…
As poucas refregas que se davam, decididas a varapau, em cuja esgrima são mestres, desapareceram…
Todos se auxiliam, não sendo raras as provas de solidariedade prestadas a viúvas e órfãos de companheiros de trabalho…
As mulheres, nos campos para onde vão trabalhar, exigem quartéis separados, escolhem locais de faina também distantes dos outros ranchos e dançam à parte. Mas a justificação dessa desconfiança encontra-se nos seus costumes. É que, sendo tabu entre glorienses casar com gente de outras terras – e raras são excepções – evitam por todos os meios que o fogo se ateie, erguendo essas barreiras que os isolam…
Uma alta expressão do cuidado das glorianas, assim se apodam, está nas toucas e vestidos dos seus filhinhos. Qualquer touca vulgar é engrinaldada de dois e três franzidos, e o restante coberto de bordados vários. Nelas se esmeram, pondo-lhe na confecção toda a sua arte apurada…
A dança na Glória é muito cultivada. O vira, o fandango, o verde gaio, o bailarico, a remexida e a valsa serena têm a sua predilecção. Os glorienses dançam ao som do harmónio, da concertina, da guitarra, da gaita de curra-beiços ou da flauta…
Preferem as danças de enlaçamento, e de entre elas a remexida vertiginosa e impulsiva…
Os que ficam sem rapariga estão à volta, e, quando lhes apetece, afastam outro, tomando-lhe o par…
As cachopas não gostam que os seus pares se apurem na dança com requebros exagerados e passos que chamen a curiosidade da assistência.
Abandonam-nos no terreiro, fogem-lhe e exclamam:
- Cheta, cão!...
E eles galhofam e tetam arrastá-las para a vertigem das remexidas ou a suavidade das valsas serenas…
E é assim este povo admirável, que quer ser feliz e o merece.
Os seus pesares e lutas, folguedos e amores, o fazem poeta. Primeiro que outros o cantassem, ele se cantou…”
Não venho aqui para dar vivas,
Nem mesmo pra dar vitória,
Venho aqui pra agradecer
À Senhora da Glória.
Semeei, não apanhei
Milho miúdo n’areia
Quem semeia não apanha
Que fará quem não semeia.
In Alves Redol, Glória Uma Aldeia do Ribatejo
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